sábado, 25 de abril de 2009

Um blindado no jardim




Um dia cheguei ao liceu onde andava a estudar e, ao dobrar a esquina que dava acesso à entrada principal, vi algo de espantoso: em cima do jardim estava um tanque de guerra! Só mais mais tarde me apercebi do que se estava a passar: tinha havido uma Revolução. A minha avó dizia-me que as revoluções eram coisas terríveis, nas quais vinham à superfície ódios guardados, vinganças desejadas. Mas esta revolução parecia diferente. Em vez de tiros e violência, havia sorrisos e abraços. Punham-se cravos nos canos das armas. Gritava-se "Liberdade". Cantava-se, e nas canções haviam palavras que se repetiam: paz, pão, povo...e liberdade.

Os dias que se seguiram foram intensos. A vida das pessoas mudou. Passou a haver liberdade para se dizer o que se queria. Deixaram de haver livros proíbidos, filmes que não podiam ser vistos, canções que não se podiam cantar. Pessoas que estavam presas por dizer o que pensavam, foram libertadas. Os exilados políticos regressavam. E, para os jovens que andavam no liceu, como eu, o espectro de matar ou morrer numa guerra injusta, finalmente desaparecia. O medo desaparecia da sociedade.

Vencida a luta pela liberdade, era tempo de se escolher um modelo de sociedade. Nasciam partidos políticos. Acreditavamos que iríamos mudar o país. Misturava-se vontade, oportunidade, ingenuidade. Lembro-me que, na altura com 15 ou 16 anos, simpatizava com a FEC (ML) - Frente Eleitoralista Comunista, marxista - leninista! Com uma boa amiga, mais velha um ano, discutia as diferenças entre o MRPP e o PCP. Entre o verdadeiro marxismo e a política imperialista da URSS. Escrevia, na carteira de couro, palavras de ordem: não ao imperialismo, a terra a quem a trabalha...

As conquistas de Abril são inegáveis: a paz, a liberdade, o direito à justiça, à saúde, à educação. Para os mais novos ou para os mais esquecidos, podem parecer coisas elementares. Quem vive sem elas, sabe dar-lhes o real valor.

Mas Abril prometia mais: prometia uma sociedade em que o fosso entre os salários mais humildes e os daqueles que são melhor remunerados, não fosse o maior da UE. Prometia um país sem corruptos nos cargos públicos. Um país que não tivesse dois milhões de pobres. Um país em que os jovens encontrassem emprego. Um país em que os agricultores cultivassem a terra e os pescadores pescassem, em vez de receberem subsídios para estarem de braços cruzados. Prometia um país que atribuísse reformas justas aos seus cidadãos e não um país que dá reformas milionárias a banqueiros e políticos e de miséria aos mais humildes.

À vontade, oportunidade, generosidade e ingenuidade de Abril, foi-se juntando o cinismo, o egoísmo e o oportunismo. E se calhar fomos nós, a geração de Abril, quem mais falhou.

Celebremos, com alegria, as conquistas da Revolução dos Cravos.
Mas fica a nostalgia do que ficou por cumprir...

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Escutismo



Às vezes acontece-me, ao falar, ter dificuldade em organizar diversas ideias, de forma a dizer o que quero, de uma maneira clara, simples, eficiente. É mais fácil quando se escreve: tem-se tempo para pensar, apagar o que está mal e voltar a escrever. E mesmo assim muitas vezes não se obtem o resultado desejado.

O Escutismo tem sido uma parte importante da minha vida. Creio poder dizer que a terá mudado substancialmente. Ao longo de mais de 30 anos fiz um pouco de tudo: pata tenra, guia e sub-guia de patrulha, chefe de exploradores, pioneiros, caminheiros, presidente da comissão fiscalizadora regional, chefe de agrupamento. Nunca fui candidato a nada, nem nunca vi qualquer cargo como reconhecimento de coisa alguma, ou de evolução: apenas, em cada altura, era preciso dizer sim. Tive um bom exemplo, o do Mário Leite. Com ele aprendi a magia do escutismo e vi um dirigente criativo, simples, amigo, sem outra ambição que não fosse estar ao serviço dos jovens. Quando eu preparava uma reunião para os exploradores e lhe mostrava o plano, lá vinha a pergunta "e o sumo? o que lhes queres transmitir?". Acima de tudo coerente: vive de acordo com o que prega. Ah...aprendi também a andar mal uniformizado.

Com ele terá nascido uma certa filosofia de ser Bonfim, tendo as equipas de caminheiros um papel muito importante na vida do agrupamento. O essencial é a formação dos jovens e a transmissão dos valores do movimento. Ajudar os miúdos a serem homens de fé, felizes, solidários, criativos, responsáveis. Nós, os mais velhos, apenas estamos enquanto formos precisos. E agora é tempo de ser preciso um novo chefe de agrupamento.

Quero só passar para o papel (!) algumas convicções sobre o escutismo e como vejo o ser dirigente:

1- A nossa Lei diz " o escuta É... leal... honrado... puro... irmão... útil...". Não diz "deve ser". Será utópico pensar então que as equipes directivas, ao nível de secções, agrupamentos, núcleos, regiões, etc., devem ser exemplo de harmonia, dedicação, humildade e partilha? Funcionando sem necessidade de "galões", hierarquias e reprimendas? Liderando, no necessário, aquele que está, no momento, mais disponível, mais "inspirado", com maior capacidade de entrega? Dir-me-ão: "isso só numa sociedade ideal". Mas não é isso mesmo que o escutismo prega? Andamos a dizer aos miúdos para seguirem o exemplo dos patronos (santos) e vemos agrupamentos, núcleos e regiões onde existem lutas por cargos, tal como na política ou nas empresas. Onde está a diferença do "modo de ser escutista"?

2- Ser dirigente exige que se crie, que se invente para dar. Um dirigente é um formador de jovens. Exigem-se capacidades (manuais, ou culturais, ou intelectuais, sempre...humanas). São os "talentos" que se têm de pôr a render. Não é só pôr os miúdos a cantar aquela canção, ou a fazer o jogo que alguém inventou. É escrever novas histórias, é inventar jogos nunca jogados, é criar novas canções, construir dragões...

3- Ser dirigente às vezes dói. Não basta dar o que se tem, quando se pode. Às vezes dá-se o que se não tem, quando não se pode. Fazem-se sacrifícios, porque é preciso. Porque o acampamento tem de acontecer, porque não posso faltar à reunião, porque tenho de ir àquela missa, apesar de dar o jogo que decide o campeonato. Em casa, exige-se trabalho de inspiração e transpiração: têm de se levar ideias para o jogo, temos de estudar o tema do debate, é preciso fazer o guião das promessas. O dirigente não anda no escutismo porque gosta. Anda porque tem uma MISSÃO.

4- B.P. dizia que, se tivesse de escolher um cargo no escutismo, escolheria o de guia de patrulha. A mim faz-me um bocado de confusão as ambições de alguns, cujo objectivo maior é ser chefe de núcleo ou regional. Sempre vi o escutismo como uma pirâmide invertida: em cima, estão os mais importantes - os lobitos, os exploradores, etc. Em baixo, os dirigentes, que só existem em função dos outros.

5- Ser dirigente exige coerência. Não podemos falar do Homem Novo e não sermos católicos (o praticante é redundante). Não pudemos falar de pureza e dizer palavrões. Não pudemos falar de higiene e não pegar numa vassoura quando o chão está sujo. Não podemos falar de serviço ao próximo e não aparecer sempre que o agrupamento chama. Ou então seremos dos que dizem que uma causa, além de justa, deve ser oportuna. Os jovens devem poder tomar-nos como exemplo: não só das nossas palavras, mas sobretudo das nossas acções.

6- Um agrupamento vivo e saudável deve gerar adultos dispostos a dizerem "sim, aceito" quando de servir se trata. Gente que esteja disponível para servir, por exemplo, como chefe de agrupamento, com humildade, com vontade de melhorar o que está mal e de manter o que de bom se faz. Que saiba ser garante da continuidade da instituição, mesmo com sacrifício pessoal. Que seja capaz de compromissos e rupturas. Mas sempre à imagem de B.P..

Enfim, como diz a oração: "ser generoso, dar-me sem medida, gastar-me sem esperar outra recompensa que não seja saber que faço a Vossa (não a minha) vontade".

É difícil? É.
Conseguimos? Às vezes.
Mas devemos tentar, sempre da melhor vontade!