

Um dia cheguei ao liceu onde andava a estudar e, ao dobrar a esquina que dava acesso à entrada principal, vi algo de espantoso: em cima do jardim estava um tanque de guerra! Só mais mais tarde me apercebi do que se estava a passar: tinha havido uma Revolução. A minha avó dizia-me que as revoluções eram coisas terríveis, nas quais vinham à superfície ódios guardados, vinganças desejadas. Mas esta revolução parecia diferente. Em vez de tiros e violência, havia sorrisos e abraços. Punham-se cravos nos canos das armas. Gritava-se "Liberdade". Cantava-se, e nas canções haviam palavras que se repetiam: paz, pão, povo...e liberdade.
Os dias que se seguiram foram intensos. A vida das pessoas mudou. Passou a haver liberdade para se dizer o que se queria. Deixaram de haver livros proíbidos, filmes que não podiam ser vistos, canções que não se podiam cantar. Pessoas que estavam presas por dizer o que pensavam, foram libertadas. Os exilados políticos regressavam. E, para os jovens que andavam no liceu, como eu, o espectro de matar ou morrer numa guerra injusta, finalmente desaparecia. O medo desaparecia da sociedade.
Vencida a luta pela liberdade, era tempo de se escolher um modelo de sociedade. Nasciam partidos políticos. Acreditavamos que iríamos mudar o país. Misturava-se vontade, oportunidade, ingenuidade. Lembro-me que, na altura com 15 ou 16 anos, simpatizava com a FEC (ML) - Frente Eleitoralista Comunista, marxista - leninista! Com uma boa amiga, mais velha um ano, discutia as diferenças entre o MRPP e o PCP. Entre o verdadeiro marxismo e a política imperialista da URSS. Escrevia, na carteira de couro, palavras de ordem: não ao imperialismo, a terra a quem a trabalha...
As conquistas de Abril são inegáveis: a paz, a liberdade, o direito à justiça, à saúde, à educação. Para os mais novos ou para os mais esquecidos, podem parecer coisas elementares. Quem vive sem elas, sabe dar-lhes o real valor.
Mas Abril prometia mais: prometia uma sociedade em que o fosso entre os salários mais humildes e os daqueles que são melhor remunerados, não fosse o maior da UE. Prometia um país sem corruptos nos cargos públicos. Um país que não tivesse dois milhões de pobres. Um país em que os jovens encontrassem emprego. Um país em que os agricultores cultivassem a terra e os pescadores pescassem, em vez de receberem subsídios para estarem de braços cruzados. Prometia um país que atribuísse reformas justas aos seus cidadãos e não um país que dá reformas milionárias a banqueiros e políticos e de miséria aos mais humildes.
À vontade, oportunidade, generosidade e ingenuidade de Abril, foi-se juntando o cinismo, o egoísmo e o oportunismo. E se calhar fomos nós, a geração de Abril, quem mais falhou.
Celebremos, com alegria, as conquistas da Revolução dos Cravos.
Mas fica a nostalgia do que ficou por cumprir...