quarta-feira, 25 de junho de 2008

Arqueologia e silêncio

Sou péssimo a recordar datas. Mas creio que terá sido em 1981, o acampamento de verão em Lamas de Mouro, perto de Castro Laboreiro. Na vila havia um Padre, Aníbal, de seu nome, que era um historiador e arqueólogo conhecido. As homilias eram incríveis: qualquer texto do Evangelho era pretexto para imediatamente passar para a história de Castro Laboreiro, mais parecendo que nos encontravamos numa aula de arqueologia do que numa missa. O certo é que todos ficamos, na altura, com uma costelinha de arqueólogos. Bem, no final do acampamento, eu e mais três caminheiros resolvemos não regressar com os outros na camioneta e optamos por ficar mais uns dias no local, com o intuito de aproveitar para conhecer melhor a serra. Eu já não me andava a sentir lá muito bem, mas a desgraça veio no primeiro dia em que ficamos sózinhos: fiquei com fortíssimas dores de barriga, cheio de vómitos e outras coisas tais. Na mesma altura descobri a razão: o riacho donde bebíamos água tinha já, a montante, trechos estagnados! Foi muito giro: alternava entre o vomitar, o agarrar a barriga e o ...Bem, a certa altura, estando eu sózinho a praticar a primeira das referidas coisas, reparei em algo enterrado que assomava ligeiramente à superfície! Quando consegui parar a desagradável tarefa, fui investigar: era algo cerâmico, de barro grosseiro. Vieram-me à memória as homilias arqueológicas do Padre Aníbal e como ele afirmara haver por ali muitos achados arqueológicos. Comecei a escavar a terra dura com as mãos. Parecia um objecto grande. De cinco em cinco minutos interrompia a escavação, ora para vomitar, ora para...Á medida que ia escavando à volta do objecto, a minha expectativa ia crescendo: apresentava uma forma muito esquisita, com uma curvatura muito pronunciada e parecia inteiro. Antevia os jornais: "escuteiro descobre vaso etrusco com 3.000 anos, intacto". Tive de interromper a escavação por diversas vezes para...pois. Mas, após algum tempo e esforço, finalmente a peça já se podia mover. A excitação estava no auge: puxei com força e a peça finalmente viu a luz do dia. E era, nem mais nem menos... um sifão de sanita, dos antigos, em barro...Os sonhos de glória ficaram logo ali. Nem os meus três amigos entenderam a minha decepção, porque me gozaram o resto do dia.

Bem, mas se me recordo bem desta história, algo nesta altura me marcou muito mais profundamente: o silêncio que ficou após a partida das pessoas do agrupamento. Depois de uma semana a dar no duro, a trabalhar para a miudagem, na mente de nós quatro estava um merecido descanso, passeio e boa-vida. Mas para cada sítio que olhavamos, recordavamos como ainda há pouco fervilhara de vida, de alegria, de gente. Parecia um filme: nos locais, agora vazios, revíamos, no nosso imaginário, as caras, os risos, as correrias, os sons. Evidentemente que conversamos, que gracejamos, que cantamos, mas o silêncio era mais forte. O silêncio da ausênca, de saudade da felicidade vivida, da nostalgia. Aguentamos lá mais um dia. Depois fugimos a sete pés. Tinhamos muito pouco geito para ermitas, mesmo numa congregação a quatro.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Homenagem



Gosto desta música. Mal a ouvi pela primeira vez, senti que ia entrar na minha galeria particular de músicas preferidas. É uma música calma mas cheia de força, com a voz rouca, por vezes quase desafinada, da Brandi Carlile. É curioso que se intitula "The story". Coincidências... E esta música vem mesmo a propósito para servir de pretexto para uma homenagem pessoal a uma boa amiga. Uma amiga que está presente na minha vida há mais de trinta anos. Que partilhou comigo alegrias e tristezas, vitórias e derrotas. Que quase diariamente priva comigo. Sempre que passo alguns dias sem ela, sinto saudades e anseio o reencontro. Sei de amigos meus que partilham este sentimento por ela. O Berto e o Amadeu, por exemplo. Às vezes, quando acampamos (nessas alturas não a temos connosco), falamos dela e de como cada um de nós viverá o reencontro. Já o Zé Pinto não a suporta. Creio que nunca lhe deu uma oportunidade de mostrar os seus encantos. A minha mulher não desgosta dela, embora eu sinta ciúmes em a partilhar. Quero-a só para mim. Não admira: nunca me deixou mal disposto e até já me alegrou...
Assim sendo, proponho um brinde: deixem o preço de petróleo trepar, o arroz disparar, as acções colapsar, mas que nunca falte a amiga CERVEJA para celebrar. Bem, para não deixar mal o carácter pedagógico (presunçoso) deste blogue, acrescento: beber, mas com moderação. Há pequenos prazeres na vida que só o são enquanto somos nós que os controlamos. Se são eles que nos controlam, se nos tornamos dependentes, aí vai-se o gozo e vem a tristeza. E deixamos de ter motivos para rir ...com os pequenos prazeres da vida!

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Quando o arco-irís parece muito distante



Nunca me esqueci daquela história que li num livro para Guias de Patrulha: "Perguntaram a três pedreiros que construíam uma catedral, o que faziam ali. O primeiro respondeu - arrasto pedras. O segundo afirmou - ganho dinheiro para alimentar a minha família. O terceiro disse, com um sorriso e ar sonhador - construo a catedral mais bonita que o mundo já viu". Creio que nunca pensei como o primeiro pedreiro. Geralmente, penso como o segundo. Raramente consigo sentir o que sentia o terceiro. Para grande pena minha. Às vezes ponho-me a imaginar o que sentirá um escritor ao terminar um livro que irá correr o mundo nas mãos de leitores ávidos de conhecer o seu desfecho. Ou a sensação de um cineasta ao verificar como as pessoas, ao verem o seu filme, riem, choram, sustêm a respiração e no final, à saída, se mostram tocadas pela magia que sentiram naquele par de horas. Ou ainda um pintor ou um escultor, ao terminarem a sua obra-prima. Um médico ao salvar uma vida. Um político, um activista, ao lograrem implementar algo que terá um impacto positivo na vida de muitas outras pessoas. Diga-se o que se disser, na esmagadora maioria das vezes, a realização dos nossos sonhos implica fé, trabalho e a disposição para correr riscos. E às vezes sentamo-nos, embalados pelo nosso realismo, estabilidade e conforto, a olhar o arco-íris...ao longe.

domingo, 1 de junho de 2008

Línguas mortas, palavras vivas

A pequena e simples hitória que vou contar, não me foi contada, já que eu estava presente. Tratava-se de um seminário ao qual assistiam cerca de 250 pessoas. O tema era a segunda encíclica de Bento XVI, intitulada "Spe salvi". Será escusado traduzir, porque os poucos (mas bons) leitores deste blogue saberão de imediato que quer dizer "Salvos na esperança", uma vez que o latim é uma língua que dominam plenamente desde pequenos. Eu, por exemplo, lembro-me perfeitamente quando, em criança, após me ter portado mal, a minha mãe ao dar-me uma sapatada, me dizia: "a teneris consuescere multum est" (de pequenino se torce o pepino), ao que eu, choroso, respondia "ab alio spetes alteri quod feceris" (quem faz o mal, espere outro tal). O latim, hoje uma língua morta, tornou-se através da Igreja a língua dos académicos e filósofos medievais europeus e é, ainda hoje, a língua oficial da Cidade do Vaticano. Mesmo as personalidades que visitam o Vaticano falam em latim. George Bush, por exemplo. Na última visita apercebi-me perfeitamente do Santo Papa ter dito a Bush: "non in solo pane vivit homo". A que Bush respondeu, num latim fluente, com uma pequena pronúncia texana: "qui nescit dissimulare, nescit regnare". Bem, voltemos à hitória e às coisas sérias. Como já referi, do lado de baixo estavam os tais 250 leigos (termo giro, este). A presidir à sessão, dois Bispos Auxiliares. Um dos Bispos procedeu a uma dissertação sobre a encíclica e, em seguida, passou-se a um período para colocação de questões sobre o tema, que seriam respondidas seguidamente pelo Bispo. Iam as questões a meio, quando uma senhora de idade se levanta e diz: "estou com dificuldades no meu casamento. O Sr. Bispo podia-me dizer alguma coisa?" A plateia ficou silenciosa e embaraçada. Ao mesmo tempo fiquei curioso: que iria o Bispo dizer? Eu digo-vos o que disse: rigorosamente nada. Nem uma palavra. Era como se a senhora não tivesse nunca feito a pergunta ou não existisse. Pensei no que ela deverá ter sentido. Se calhar apercebeu-se de que a questão fora totalmente despropositada e ficou cheia de vergonha, pensando que não era digna sequer dum comentário. Ou então, que o seu problema era irrelevante para os outros. Confesso que esperava do Bispo outra atitude. Um simples "é preciso ter esperança" ou "falo consigo lá fora" ou "vou rezar pelo seu casamento". Mas, reflectindo melhor, se calhar esperava mesmo o silêncio. Porque a grande maioria dos mortais, há medida que sobe na hierarquia, vai-se tornando mais distante, mais importante, e já não tem tempo, nem paciência, para os pobres e os ignorantes. O seu tempo é para ser gasto com outra gente importante como eles, ou para estudar latim ou encíclicas. Confesso que nada sei de latim; pouco sei das difíceis encíclicas de Bento XVI. Mas sei que o Homem mais importante que já calcou este nosso planeta, usava parábolas para que até as crianças o entendessem e que os seus discípulos falavam línguas estrangeiras, que não conheciam, para chegarem a todos. O Homem mais importante de todos, ensinava a humildade e tinha tempo e atenção para o mais leigo dos homens. Pois como muito bem dizia o Sr. Bispo Auxiliar: "quem ama tem tempo" e sempre um gesto de atenção, acrescento eu.